Estudo executado com colaboração
de cientistas do Brasil, Portugal e Reino Unido, se confirmado, pode
representar baixo risco de uma nova onda de infecções e descartar
a necessidade de isolamento social até vacinação efetiva da
população.
Karina
Toledo | Agência FAPESP
Um estudo publicado em 24 de
julho na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares,
estima que o limiar de imunidade coletiva ao novo coronavírus (SARS-CoV-2)
– também conhecida como imunidade de rebanho – pode ser alcançado
em uma determinada região se algo entre 10% e 20% da população
for infectada.
Caso
a projeção se confirme na prática, os desdobramentos tendem a ser
positivos em dois aspectos. Primeiro porque significa que é pequeno
o risco de ocorrer uma segunda onda avassaladora da pandemia nos países
que adotaram medidas para conter a disseminação da COVID-19 e hoje
já registram queda no número de novos casos. Em segundo lugar
porque indica ser possível para uma cidade, um estado ou um país
alcançar o limiar de imunidade coletiva mesmo tendo adotado medidas
de distanciamento social que ajudam a evitar o colapso do sistema de
saúde e a minimizar o número de mortes.
“Nosso
modelo mostra que não é preciso sacrificar a população
deixando-a circular livremente para que a imunidade coletiva se
desenvolva. Por outro lado, sugere que também não há necessidade
de manter as pessoas em casa durante muitos e muitos meses, até que
se aprove uma vacina”, afirma à Agência FAPESP a biomatemática
portuguesa Gabriela Gomes, atualmente na University of Strathclyde,
no Reino Unido.
O
modelo matemático ao qual a pesquisadora se refere foi desenvolvido
em colaboração com cientistas do Brasil, Portugal e Reino Unido.
Entre os coautores do artigo estão o professor do Instituto de Ciências
Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) Marcelo Urbano
Ferreira e seu aluno de doutorado Rodrigo Corder.
“Temos
trabalhado juntos com Gabriela Gomes há alguns anos usando essa
abordagem para descrever a dinâmica de transmissão da malária na
Amazônia brasileira, com apoio da FAPESP. Ela também já havia
feito alguns estudos sobre tuberculose. O modelo que usamos é
diferente dos demais, pois leva em conta o fato de que o risco de
contrair uma determinada doença varia de pessoa para pessoa”,
conta Ferreira.
Como
explica Gomes, os fatores que influenciam o risco de um indivíduo
contrair a COVID-19, por exemplo, podem ser divididos em duas
categorias. Em uma delas estão os de ordem biológica, como a genética,
a nutrição e a imunidade. Na outra se inserem os fatores
comportamentais, que determinam o nível de contato com outras
pessoas que cada um de nós tem no cotidiano.
“Isso
tem relação com o tipo de ocupação, o local de moradia, os meios
de deslocamento e até o perfil de personalidade. Uma pessoa que
prefere ficar em casa lendo um livro tem um risco menor de se expor
ao vírus do que quem sai com muita frequência e se relaciona com
muitas pessoas”, diz a pesquisadora.
De
acordo com Gomes, os modelos que estimaram o limiar de imunidade ao
SARS-CoV-2 variando entre 50% e 70% consideram que o risco de infecção
é o mesmo para todos os indivíduos.
“Temos
visto que, no caso da COVID-19, quanto maior é o grau de
heterogeneidade da população, mais baixo se torna o limiar da
imunidade de grupo”, afirma Gomes.
Métodos
de cálculo e políticas públicas
Medir
em cada indivíduo de uma população cada um dos fatores que
influenciam a suscetibilidade de contrair o novo coronavírus para
então calcular qual seria o chamado “coeficiente de variação”
– parâmetro-chave do modelo descrito no artigo – seria algo
inviável. Por esse motivo, os pesquisadores optaram por fazer o
caminho de trás pra frente.
“Sabemos
que se alterarmos o coeficiente de variação há um impacto na
curva epidêmica projetada pelo modelo. Decidimos então fazer o
reverso: usamos a curva epidêmica de países em que a epidemia já
estava em fase avançada para calcular o coeficiente de variação”,
explica Gomes.
A
versão mais recente do trabalho se baseia em dados de incidência
(número de novos casos diários) da Bélgica, Inglaterra, Espanha e
Portugal. “Pretendemos em breve estudar os dados do Brasil e
Estados Unidos, onde a epidemia ainda está em evolução”, diz a
pesquisadora.
Segundo
os autores, embora o coeficiente de variação seja diferente em
cada país, de forma geral, o limiar de imunidade coletiva tende a
ficar sempre entre 10% e 20% e isso é extremamente relevante para a
formulação de políticas públicas.
“Em
locais onde o limiar de imunidade coletiva já foi alcançado, a
tendência é que o número de novos casos continue a cair mesmo se
a economia for reaberta. Mas, caso as medidas de distanciamento
sejam relaxadas antes de a imunidade coletiva ser alcançada, os
casos provavelmente voltarão a subir e os gestores devem estar
atentos”, afirma Corder. “Conceitualmente, após atingir a
imunidade coletiva, a transmissão tende a se prolongar caso as
medidas de controle sejam retiradas rapidamente”, alerta.
Segundo
o relato de Gomes, em Portugal é possível observar duas situações
distintas. A região norte, por onde o vírus entrou no país, foi
bem mais impactada no início da pandemia e agora, mesmo com a
economia reaberta, o número de casos novos permanece em queda. Já
no sul, onde se localiza a capital Lisboa, os casos seguem tendência
de alta.
“Por
enquanto são surtos localizados, em bairros de Lisboa, que estão
sendo localmente contidos por meio de testagem e isolamento de
infectados. As pessoas só foram liberadas para voltar ao trabalho
em Portugal após fazerem testes”, conta a pesquisadora.
Situação
parcialmente semelhante ocorre no Brasil. A região de Manaus (AM),
no Norte, aparentemente atingiu o pico da curva epidêmica em maio,
quando houve o colapso do sistema de saúde. Depois disso, o número
de novos casos tem caído mesmo com a economia aberta e as escolas
retomando as atividades presenciais. Estudos sorológicos indicaram
que em cidades como Manaus e Belém, no Pará, mais de 10% da população
já tem anticorpos contra o novo coronavírus. Já a região Sul,
que registrou um pequeno número de infecções no início da
epidemia e onde o índice de soroprevalência na população estava
em torno de 1% em maio, tem registrado um aumento no número de
casos novos à medida que as atividades estão sendo retomadas.
Diferentemente de Portugal, o investimento em testagem e
rastreamento de infectados no Brasil ainda permanece aquém do
considerado ideal.
Como
ressaltam os autores do artigo, o fato de o limiar de imunidade
coletiva ser menor que o inicialmente previsto não diminui a importância
das medidas de saúde pública para conter a disseminação do vírus
e reduzir o número de mortes.
“Se
algum gestor defende a imunidade coletiva como política pública
ele está equivocado. As medidas de controle são importantes para não
sobrecarregar o sistema de saúde. Mas o novo entendimento da dinâmica
de transmissão da COVID-19 que nosso modelo traz aponta para um cenário
mais otimista”, diz Corder.
Na
avaliação de Gomes, a adesão às medidas de isolamento tende a
ser maior se as pessoas souberem que o sacrifício será necessário
por um período mais curto. “Quando dizemos que a epidemia só será
superada quando a vacina chegar, as pessoas começam a pensar em
desrespeitar as normas, pois já não aguentam uma vida tão pouco
sociável, com tantas restrições”, diz.
Próximos
passos
Alimentar
o modelo com dados do mundo real é a melhor forma de tornar suas
simulações e estimativas mais realistas. Com esse objetivo,
Ferreira pretende testar em um estudo de campo no Acre dois
pressupostos usados nos cálculos do grupo: o índice de detecção
da doença (a diferença entre o número real de infectados e o número
de casos diagnosticados) e o tempo de duração da imunidade contra
o SARS-CoV-2.
“No
trabalho, consideramos que em torno de 10% dos casos reais são
detectados pelos serviços de saúde e que a imunidade contra o vírus
dura ao menos por um ano. Vamos ver se isso se confirma em uma
população que acompanhamos já há alguns anos na cidade de Mâncio
Lima”, conta o pesquisador.
O
grupo do ICB-USP tem realizado a cada seis meses inquéritos
domiciliares com uma amostra da população da cidade acriana
situada na fronteira com o Peru. Além de aplicar questionários, os
pesquisadores coletam amostras de sangue. A ideia é acompanhar como
evolui a soroprevalência ao SARS-CoV-2 nessa população ao longo
do próximo ano e observar por quanto tempo os anticorpos podem ser
detectados no sangue. O trabalho conta com apoio da FAPESP (leia
mais em: http://agencia.fapesp.br/32883/).

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